Os “casos isolados” de violência que vem acontecendo no Complexo da Raposo Tavares da Fundação CASA há dezessete anos

Entre os quilômetros 19,5 e 20 da Rodovia Raposo Tavares, na divisa das cidades de São Paulo e Osasco, há aproximadamente 3.250 pessoas presas, sendo aproximadamente 3 mil adultos de acordo com o site da SAP[1] e pelo menos 250 jovens, de acordo com familiares e funcionários da Fundação CASA. Lá, temos o Centro de Progressão Penitenciária Feminino “Dra. Marina Marigo de Oliveira” do Butantan, o Centro de Detenção Provisória I “Ederson Vieira de Jesus” de Osasco, o Centro de Detenção Provisória II “ASP Vanda Rito Brito do Rego” de Osasco e o Complexo da Fundação CASA da Raposo Tavares, o qual agrupa cinco unidades de “internação” (que entendemos como prisão) de jovens: CASA Ipê, CASA Cedro, CASA Nogueira, CASA Jatobá e CASA Nova Aroeira. Quem passa aos finais de semana por ali observa dezenas de pessoas (em grande parte mulheres) carregando bolsas de jumbo a caminho da visita e, consequentemente, a caminho da revista vexatória.

No começo do mês de fevereiro de 2017 chegaram ao Coletivo Autônomo Herzer algumas cartas de jovens presos neste Complexo da Fundação CASA; jovens das unidades Jatobá e Cedro que são frequentemente agredidos por funcionários e também mencionam a rotina de restrição de alimentos, água e higiene. Mães também relatam que a unidade Nova Aroeira tem feito “boas vindas” para quem chega na unidade, com sessões de espancamento e isolamento. Diante destas informações o coletivo se organizou para comparecer na porta do Complexo nos dias de visita para fortalecer familiares e tornar público o que estava acontecendo. Esta não foi a primeira vez que o Herzer se organizou na porta deste Complexo. Em 2014, quando atuava como  Rede 2 de Outubro, algumas ações e vínculos com familiares foram costurados, sendo que algumas permanecem até hoje. Também não é a primeira vez que se sabe de diversas formas de tortura vivenciadas por jovens dentro deste Complexo da Fundação CASA.

Em uma busca rápida na internet conseguimos montar uma cronologia de notícias de diversas violências cometidas contra jovens presos no Complexo da Fundação CASA da Raposo Tavares. Sabe-se que estas denúncias publicizadas representam apenas a ponta do iceberg de toda a violência praticada contra jovens em qualquer cadeia para adolescentes, seja nos tempos da FEBEM ou da Fundação CASA no Estado de São Paulo, no Degase no Rio de Janeiro ou nas unidades do Cense no Paraná. O que aparece na mídia é sempre uma pequena porção de toda a violação existente em unidades prisionais, seja de adultos ou de jovens.

Em nossa busca, entrando com as palavras-chave “Complexo da Raposo Tavares Fundação CASA” no Google e selecionando todas as notícias que tratam de violações aos direitos humanos neste lugar, a primeira se refere ao ano 2000, ainda quando a FEBEM era responsável pelo encarceramento de jovens no Estado de São Paulo. Em “Justiça condena 14 acusados de tortura na Febem, em SP”[2], temos acesso a um processo que condenou a 925 anos de prisão pelo crime de tortura quatorze funcionários ligados à FEBEM, funcionários da Raposo Tavares e também de Franco da Rocha, os quais promoveram sessões de espancamento a jovens presos e também articularam restrição à água, alimentos e falta de higiene; a condenação saiu em 2006.

Em 2003, em uma matéria do Estadão[3], um funcionário da Raposo Tavares afirma que os jovens não tem acesso a aulas ou participam de qualquer tipo de atividade pedagógica, cultural, esportiva; “é tudo fachada”, diz ele. No ano de 2004 nos chama a atenção uma carta aberta[4] publicada pelo Coletivo de Professores Indignados com a Situação na Febem, os quais contam sobre uma rebelião no Complexo da Raposo, onde docentes foram feitos reféns. Além disso, relataram sobre as condições de lecionar dentro daquele espaço, onde fiscalizam e censuram os conteúdos de suas aulas, proíbem a APEOESP de entrar no Complexo e docentes de falar sobre qualquer situação vivenciada lá dentro, além de tratarem sobre o silêncio da mídia acerca do caso e da afirmação de que “a escola na Febem não é uma escola”.

O antropólogo Fabio Mallart, autor do livro “Cadeias dominadas: A Fundação CASA, suas dinâmicas e as trajetórias de jovens internos”, narra sua experiência entre 2004 e 2009 como oficineiro junto aos adolescentes de vários complexos, entre os quais inclusive o da Raposo Tavares. Mallart argumenta que a estrutura da medida socioeducativa é baseada na mesma do cárcere, tendo seus símbolos, sua hierarquia e situações-conflito fazendo referência a este, de modo que os adolescentes (há vários relatos específicos e fortes sobre as unidades da Raposo) se veem como parte da lógica do crime, a qual se segmenta e atua a partir do modelo de facções, para que sobrevivam em meio àquele ambiente de tensão[5].

Em 2008, dois anos após a transição de FEBEM para Fundação CASA e sob a presidência de Berenice Maria Giannella, a Folha publicou uma matéria sobre o afastamento de Berenice em decorrência de irregularidades nos Complexos da Vila Maria e da Raposo Tavares da Fundação CASA. A decisão se fundamenta em relação aos jovens ali presos estarem em situação de “mero confinamento, ociosidade e segregação punitiva, sem implementação de atividades pedagógicas mínimas e medidas para coibir a violência contra os internos” [6]. No começo de 2010, o Estado de São Paulo publicou um relatório[7] que denuncia diversas violações a jovens presos na Vila Maria e na Raposo Tavares cometidas no ano anterior. Elaborado pela Conectas Direitos Humanos, Ilanud, Instituto ProBono, ACAT, AMAR, Comissão Teotônio Vilela e Cedeca Sapopemba e Interlagos, o relatório versa principalmente sobre o Complexo da Raposo Tavares, onde um garoto passou mais de 20 dias na “tranca” (solitária) e outros dois tiveram diversos ferimentos em decorrência de funcionários jogarem aparelhos de TV e som neles.O relatório também pontua o alto índice de medicalização, onde um terço dos jovens lá presos eram medicados com psicotrópicos; um jovem que tem uma bolsa de colostomia onde “a demora e os atrasos no seu atendimento regular lhe causam graves problemas, inclusive uma vez se viu obrigado a substituir a sua bolsa de coleta por um saco plástico de supermercado”; jovens com braços quebrados depois da entrada do “Choquinho”, os quais não tiveram atendimento médico adequado, resultando na restrição de movimentos. Ainda sobre este relatório, destacamos a música do “Grupo de Apoio”, cantada antes de intervenções nas unidades da Fundação CASA: “Grupo de apoio/ qual é sua missão? / Entrar na unidade / Pra quebrar ladrão / Grupo de apoio / Qual é sua missão ? / Bater nos ladrão e derramar sangue no chão”.

Em 2011 o Complexo da Raposo Tavares esteve muito presente na mídia devido às diversas violações e torturas praticadas por funcionários contra os jovens ali presos. Foram divulgadas cartas escritas por garotos que passaram por aquele Complexo e principalmente na unidade Jatobá, em que familiares se organizaram junto a movimentos como AMPARAR, Rede 2 de Outubro e Mães de Maio, fazendo diversos atos e movimentações para publicizar o que acontecia no Km 19,5 da Raposo Tavares[8], rendendo até a visita do Subcomitê de Prevenção da Tortura da Organização das Nações Unidas (ONU). Infelizmente o resultado de toda esta movimentação foi o afastamento de direções de Unidades, que posteriormente assumiram outros postos em outras unidades da Fundação CASA, um jogo de xadrez que caracteriza a medida de internação da Fundação CASA no Estado de São Paulo em casos de denúncias de tortura. A AMPARAR acompanhou de perto este caso e em relatório produzido para a ONU narra uma cronologia de violações na Raposo Tavares; em 2012, na Jatobá, mencionam as agressões contra jovens perpetradas pelo próprio diretor, a divulgação de cartas de jovens relatando tortura e espancamentos com cabos de vassoura, cadeiras e “clicke” de ferro, inclusive com jovens não recebendo atendimento médico posteriormente. Sobre 2013 falam sobre uma rebelião no CASA Jatobá que visava denunciar os maus-tratos vivenciados, a qual resultou na absurda transferência de 12 jovens maiores de 18 anos para o CDP de Osasco; em 2015 familiares continuavam se organizando, pois os jovens ainda permaneciam no CDP.

Em 2015 foi a vez do CASA Cedro novamente ser o destaque na tortura do Complexo da Raposo Tavares da Fundação CASA. Em matéria do G1 “Jovens são espancados na Fundação CASA, diz Defensoria; MP abre ação” [9] é relatada tortura e agressões a pelo menos 15 jovens presos na Cedro, os quais foram agredidos com cassetetes, cadeiras, cintos, cabos de vassoura, resultando em hematomas nas costas, pernas, olhos e um jovem com o braço quebrado, além de também não receberem cobertores e constatarem que os dormitórios são úmidos e possuem mofo.

Fizemos esta cronologia para afirmar que o que acontece no Complexo da Raposo Tavares e em todas as unidades da Fundação CASA não são fatos isolados, não são situações pontuais e sim dinâmicas que estão internalizadas em seu cotidiano. A tortura faz parte do funcionamento da Fundação CASA, engrenagem que viabiliza seu “funcionamento”. Inclusive, em 2017, mais um caso sobre a Jatobá foi publicado pela Ponte[10]. No início de março de 2017 (dia 11/03, sábado), soubemos que um adolescente de cada dormitório do centro Jatobá foi “destacado” (selecionado) pelos funcionários da área de segurança e sofreram uma sessão de espancamento junto aos adolescentes que chegaram durante a semana no centro. Segundo os relatos dos adolescentes, é “normal” que adolescentes recém-chegados passem pela sessão de agressão, um tipo de recepção cruel de “boas-vindas” por parte dos funcionários, mas não havia ocorrido ainda sessões conjuntas de tortura com adolescentes novatos e antigos do centro. Além disso, aqueles que foram espancados tiveram suas cabeças raspadas, de modo a serem punidos e também identificados.

Na sexta-feira, dia 18 de março, soubemos que os jovens presos no CASA Cedro foram espancados brutalmente, tiveram que tomar pontos nas pernas e cabeça, sendo que um jovem teve seu dente arrancado por um funcionário que arremessou uma cadeira em sua boca.

Segue carta na íntegra de um dos jovens presos nesta unidade:

Dia 20/03/17 Opressão

Meu nome é XXXXX estou pedindo ajuda de vocês porque ouve opressão. Muitos adolescentes machucados, XXXXX quebrou o dedo, XXXXX quebrou os dentes, XXXXX ponto na testa, na perna, XXXXX varios cortes na cabeça, XXXXX ponto na cabeça. Muitas agressões bateram em nois com os cadiados de ferro, machucaram nois muitos bateram na nossa cara. Ajuda nois pessoal ta dificil pra nois, eles estão quebrando nois, batendo na nossa cara, nois queremo o nosso bonde porque eles falaram que vai pegar nois dormindo e entrar um monte de funcionário e quebra nois. Nois queremos sair dessa unidade porque a diretora não ta nem aí ela passa pano fala que nois tem que apanhar na cara pra nois aprende. Não é assim como nois vamos aprender desse jeito apanhando, como nois vamos tirar a nossa medida socioeducativa.

A situação por lá está insustentável, familiares e jovens clamam por ajuda em meio a um misto de revolta e humilhação. O que se pode perceber é que a violência segue sendo perpetuada todos os dias no Complexo da Raposo Tavares e em todas as unidades da Fundação. Denúncias são feitas, em âmbito nacional e internacional, e nenhuma mudança estrutural é verificada. O sangue continua sendo derramado todos os dias sob a nebulosa falácia das “medidas socioeducativas”, as quais autorizam e formalizam o cárcere e a tortura para as adolescências indesejáveis.

 

[1] http://www.sap.sp.gov.br/uni-prisionais/cdp.html#

[2] http://www.conjur.com.br/2006-out-04/quatorze_acusados_sao_condenados_925_anos_prisao

[3] http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,mais-uma-tentativa-de-fuga-na-febem-raposo-tavares,20030318p6035

[4] http://www.brasil.indymedia.org/pt/blue/2004/05/281480.shtml

[5] MOREIRA, Fabio Mallart. Cadeias dominadas: dinâmicas de uma instituição em trajetórias de jovens internos. USP, dissertação de mestrado, 2011

[6] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2008/09/441475-justica-de-sp-afasta-do-cargo-a-presidente-da-antiga-febem.shtml

[7] http://www.global.org.br/blog/uol-relatorio-aponta-casos-de-violencia-na-antiga-febem/

[8] http://negrobelchior.cartacapital.com.br/fundacao-casa-tortura-e-o-caso-da-unidade-raposo-tavares/

[9] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/07/jovens-sao-agredidos-na-fundacao-casa-diz-defensoria-mp-abre-acao.html

[10] http://ponte.cartacapital.com.br/jovem-denuncia-violencia-na-fundacao-casa-chutes-madeira-enforcamento-e-soco-ingles/

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